Thursday, November 1, 2018


Zabriskie Point - 1970
de Michelangelo Antonioni
-














Pra nós tudo começa em metódica contemplação,
como alguém seguindo um pássaro raro.


O que o discerne dos outros? Quais os tons de seu canto?
A câmera esquece sua natureza e propósito: é lente de aumento,
alimento da curiosidade de um diretor questionador.


Talvez por Antonioni não fazer parte do contexto, geograficamente falando,
ele assuma essa perspectiva de cientista examinando padrões,
dividindo personagens em unidades cada vez menores até que,
finalmente, os descubra como são.


e nisso evidencia, em processo não comprometido,
contradições e rupturas no evocar do passado
– de um passado desde o presente – para os rumos futuros
de um presente dissonante.


Zabriskie Point é de fato um retrato do desejo – ‘explosivo’ –
de uma geração na imediatez de seu processo de delineação maior,
sem elos iniciais além da repentina consciência do todo,
cimentada pela sempre revolucionária estréia na vida adulta.
Tão chocante e crua quanto ser acordado por um copo de água gelada.
Um documento fílmico da vocação de um grupo heterodoxo
de jovens pelo ato geracional da ruptura – um desejo que se repete,
em rituais e performances, como uma dança (ou um mantra) ao longo do filme.


E assim, sufocado pelas cruas exposições do cotidiano urbanizado,
em entalhes de logomarcas e claustrofóbicas panorâmicas,
exemplificam a antítese de tais noções no escapismo ritualístico
ao deserto da morte: mãe de toda vida
– o selvagem em seus instintos mais vívidos –, ali onde, também,
se distanciam orgasmicamente das pautas mais incisivas da política.


Um garoto, de uns 10 anos, no universo lúdico de um pet-shop atacadista,
optando por um par de filhotes – seu primeiro par de filhotes –
se depara, no amálgama de cores, dentes e orelhas,  
com o impasse inequívoco da escolha. Zabriskie Point,
no dinamismo cadenciado de seu deslumbramento esquadrinhador,
não elege seus protagonistas como um cientista,
e distancia-se também do ornitólogo do início: assume-se poeta,
voyeur, Baudelaire, escriba e bardo – pelo tempo que lhe cabe sê-lo.
Mark, seu espécime 01, é um cara comum vivendo sob os efeitos das
grandes mudanças mentais/econômicas/emocionais da época: nada mais.
Daria, seu espécime número dois, tipifica a verdade de que ninguém,
nem mesmo os que venderam livros, verdadeiramente
compreenderam aqueles dias. Seus percursos, em confluência,
é a certeza de que a única coisa de fato clara no processo
é o fato de que pela primeira vez na “standard” história norte americana
do século XX, os ‘pais’, ou o que quer que esses
representassem no grande escopo das coisas,
não eram mais levados à sério por seus ‘filhos’.


A escolha pelo selvagem, a aposta pelo amor – como ideologia motriz –,
corporifica-se no deslocamento da liberdade possível ao recôndito deserto,
inexplorado, apartado, o lugar onde somos livres,
ao lugar onde nos conectamos com o significado real das coisas
não contempladas no mundo: onde a completa e plena falta de sentido
(como sentido último) é a norma, e o desfrute sensorial
do momento presente, em rituais de libertação relativos e exercícios de ruptura,
davam ao desdém pelas regras mantidas por nossos pais
uma dimensão pragmática suficiente.


Refletem, na projeção de Zabriskie Point,
o poder inerente ao filme de Antonioni, pois energiza,
na captura da fuga, sua particular e já conhecida sensitividade empregada
a essência desse movimento contra-cultural
– e de uma juventude que se fazia estrangeira (e estrangeira à ele
por mais razões que esta) no exílio simbólico-ritualístico
de sua herdada sociedade.




O Ponto Zabriskie



O estado da Califórnia estruturado como é,
também hospeda parte das mais belas paisagens do país.
Sua vida selvagem (ou Morte selvagem para citar o próprio filme)
é tão impressionante quanto o é abundante.
Não é por acaso que o filme seja chamado Zabriskie Point.
No topo das ‘montanhas funerárias' no Vale da Morte,
encontra-se um ótimo lugar para contemplar o vale inteiro,
lugar de um elevado mirante construído para esse mesmo propósito.


É lá que encontramos a razão: lá onde a Morte se localiza.
Onde os personagens descobriram a si mesmos,
subvertendo o próprio conceito da Morte Zabriskie,
forjando ali nova vida.


Esse subverter designa (durante todo o filme)
o tema central da peça de Antonini: primeiro na cena do “Tchau!/Alô”
no telefone, do início, e concluindo-se em arco com a re-pintura do avião.


Que o 'tempo' de Antonioni é peculiar, isso não resta dúvidas.
Mas sua disposição de personagens no espaço é,
para dizer o mínimo, igualmente impressionante.
A obra nos convida, já desde seu título, à observar, por amostragem,
os diferentes pontos de vista, raízes e razões dos feitos icônicos
de uma geração emblemática .


Seu desfecho metafórico, surrealista, eterniza no cinema
a completa ruptura instaurada pela geração 60 nos caminhos
da sociedade ocidental como então a conhecíamos.
 Uma celebração estética, sensorial, da completa desfragmentação – forçosa –
de todas os paradigmas. Constante e harmoniosamente, libertando,
em catarse, toda restrição em violenta e necessária revolução
interior (que, não por acaso, se registra na mente de uma mulher).


por T Augusto Pereira

 _
(Texto original, com variações editoriais, em circulação também no blog oitomm)


::Popular Ones::